A Carta Desconhecida


CONFIDENCIAL – RELATÓRIO DO CLIENTE
DR. ############
DEPTO. DE PSICOLOGIA E SAÚDE MENTAL
UNI#E############
#############
Dr##########
Meu contato na polícia não quis fotocopiar o documento original, mas me deixou fazer uma transcrição, que você encontrará abaixo.  Para recapitular, o original foi encontrado pelas autoridades locais no quarto 213 do motel Lua Indolente, localizado na Rota 11, a doze quilômetros de Karam, Ohio.  O documento foi encontrado no lixo, parcialmente queimado (somente cerca de quarenta por cento foi recuperado).  Pelo jeito nunca foi enviado, já que a ocupante do quarto 213 correspondia à descrição da autora da carta, J. Archer.  Também foram encontrados algumas fotografias, cujas cópias digitais anexei a este documento.  As provas físicas sugerem que ela deixou o local aproximadamente trinta minutos antes das autoridades chegarem.  Para maior clareza, meus comentários estão em ***CAIXA ALTA***.
Ouça, sei que lhe deve muito, mas eu preferiria não trabalhar mais neste caso.  Não consigo diferir as coisas esquisitas que andam acontecendo desde que você me ligou no mês passado.  Hoje de manhã, quando juntei os papéis para enviá-los, encontrei comentários estranhos e garranchos espalhados por todos os documentos.  Conhecendo você, eu os deixei exatamente como estavam em vez de apagá-los ou imprimir uma nova cópia.  Talvez eles tenham algum significado para você.  Mas não me peça para tratar mais deste assunto.  E não tente me ameaçar.  Eu me adiantei e Você-sabe-quem disse que eu não preciso mais seguir suas ordens.



K.S Delburton
*** TRANSCRIÇÃO***
Querido #########
Foi eu.
Eu fiz o que eles me disseram que fiz.  Quero que você saiba a verdade para não passar o resto da vida tentando enteder por quê.  A verdade dói e magoa.  Espero ter a coragem de escrever tudo e enviar este documento a você.
Eu o matei.
Quero que saiba o motivo.
Eu trabalhava para o Globe havia quase um ano.  “Janet Archer, repórter.”  O orgulho do papai.  Dez meses e meio sentada em meu cubículo no porão, digitando obituários e ouvindo a freqüencia da polícia.  Dez meses e meio cobrindo sessões da câmara municipal, audiências de zoneamento, roubos e acidentes envolvendo postes e adolescentes bêbados.  Fui avisada nas aulas de jornalismo que subir na carreira exigia paciência.  Nunca achei que meu primeiro emprego no jornaleco de uma cidadezinha fosse me dar um Pulitzer.  Entretanto, eu acreditava ter algo a mostrar.  Alguns clippings, umas matérias.  Mas o editor não me dava nada substancial, a não ser aquela mão gorda no meu joelho quando ele enchia a cara durante o almoço.
Verifiquei todos aqueles sites de ofertas de emprego, mas foi uma peda de tempo.  Então, um dia, eu estava folheando nossos próprios classificados anêmicos quando a encontrei, espremida entre uma vaga na pizzaria e um anúncio de recrutamento da Marinha:
PRECISA-SE DE ESCRITOR
Precisa-se de escritor experiente e/ou talentoso para ajudar senhor recluso a escrever suas memórias.  Tive uma vida longa e incomum e preciso do ficcionista certo para contar minha história.  Procuro um escriba curioso, dedicado e detalhista.  Salário generoso, horário flexível.  Apresente-se pessoalmente, das 8h às 10h, Rath Street, 133, Ogdenburg.
*** TRECHO PERDIDO ***
e eu a segui até uma sala que parecia toda a frente da casa.  Exceto por uma única coisa de armar, o aposento estava vazio.  Nada de carpete, apenas um assoalho de madeira manchado de puído.  Acho que as paredes foram brancas um dia, mas estavam cinzentas de velhice.  Havia uma segunda porta no aposento.  Era negra, pesada e estava fechada.  As janelas não tinham cortinas, somente persianas abaixadas até a metade.  A fraca luz da manhã nebulosa enchia a sala com um ar soturno de funeral abandonado.
Não havia nem mesmo uma única teia de aranha nas paredes ou no teto.  E o aposento não tinha cheiro algum.
- Aguarde – disse a governanta, a única palavra que ouvi a mulher pronunciar.
Sentei-me devagar, desejando ter trazido um pouco de café.  A mulher saiu e fechou a porta, que era tão cinzenta quanto as paredes.  Alguns minutos depois, ouvi o som de um aspirador de pó que vinha de algum lugar dentro da casa.
Suspirei e me acomodei na cadeira.  Tentei desamarrotar as calças.  Olhei pela janela, vi o asfalto rachado e as calçadas irregulares, os sacos de lixo que esperavam o caminhão da coleta e uma casinha de cachorro semi-destruída num jardim do outro lado da rua.  Eu me levantei e andei
***TRECHO PERDIDO***
a porta negra.  A maçaneta era antiga e ornamentada, algo que você você poderia encontrar num hotel art déco.  Eu me ajoelhei e tentei espiar pelo buraco da fechadura, mas estava bloqueado.
Senti algo nos pés.
Era o ar que passava por baixo da porta, um ar gelado que fazia cócegas no dorso dos pés.  Toquei a rachadura no assoalho.  A fenda tinha quase a mesma largura das pontas de meus dedos.  E, definitivamente, passava por ali um ar frio, quase gélido.
Consultei o relógio.  Já havia esperado mais de meia hora.  Era um absurdo.  Mas ainda não tinha vontade de ir embora.  Afinal, nada mais interessante que aquilo me esperava lá fora.  Foi por isso que me levantei e bati os nós dos dedos na porta negra.  E com força.
- Olá – chamei. – Tem alguém aí? Estou esperando aqui há mais de trinta minutos.  Olá?
Não houve resposta.  Levei a mão à maçaneta e a virei.  Ela girou com suavidade, sem fazer ruído, muito mais facilmente do que eu esperava.  Mas, quando tentei empurrar a porta, esta não se moveu.  Parecia estar trancada pelo lado de dentro.
*** TRECHO PERDIDO ***
beco era um pesadelo feito de lixeira grandes e pequenas, cocô de cachorro, cacos de vidro e móveis destruídos.  O cara atravessou rapidinho o beco entulhado, o que me deu a impressão de que ele já havia feito aquilo antes.  Ele já estava do outro lado do caminho.  Tinha certeza de que iria perdê-lo de vista, mas, quando saí do beco, vi que este dava para uma espécie de pátio delimitado por um galpão e uns cortiços.  A única outra saída estava fechada por uma grade.
O açougueiro estava no meio do pátio.  Havia ali um bueiro sem tampa, cercado por cones e tapumes típicos das obras públicas.  Haviam colocado por cima uma proteção temporária, uma daquelas tendinhas que a gente vê quando os operários precisam entrar e sair.  Mas não havia nenhum operário nos arredores naquela noite, ninguém exceto o açougueiro e eu.
Ele tirou a proteção do caminho.  Tive de recuar para que ele não me visse, pois seus movimentos haviam me colocado em seu campo visual.  Quando olhei novamente, ele estava agachado sobre o buraco.  Eu o vi segurar o embrulho acima da abertura.  Ouvi o papel se rasgar quando algo caiu.  Antes que eu conseguisse encontrar um lugar melhor, o açougueiro se virou e começou a andar em minha direção.  Nunca pensei que um homem tão grande pudesse se mover tão rápido.  Mal tive tempo de me agachar atrás de umas latas de lixo, e ele entrou no beco a toda pressa.  Passou por mim como se estivesse em chamas, mal diminuiu o passo para se desviar do entulho.  Ele havia sumido antes que eu conseguisse me levantar novamente.
Fui até o bueiro.
Só havia um poste de luz no beco.  Eu rezava para que a iluminação fosse suficiente.  Xinguei a mim mesma por não ter trazido uma lanterna.  Inclinei-me por sobre a beirada e espiei lá dentro.  Um pouco de luz conseguia passar mas levou algum tempo para meus olhos distinguirem as formas na escuridão.
Reparei primeiro nos dedos.
Havia mãos, mãos decepadas, três ou quatro delas, espalhadas no piso de concreto sujo e úmido do esgoto.  Havia uma perna – de mulher, acho – com pé e tudo.  As unhas cintilavam como moedas sob a luz fraca do poste.  Um pedaço de pele com pêlos e mamilos.  Formas macias e brilhantes que exsudaram algo viscoso e escuro.  Foi tudo o que vi antes de cair sobre as mãos e os joelhos para vomitar.
Depois disso, tive meu primeiro pensamento consciente quando já estava de volta em meu apartamento, sentada na beira da cama.  Eu havia tirado os tênis e olhava fixamente para eles ali no canto do quarto.  Não me lembrava de ter saído do beco.  Não sabia como tinha chegado em casa.  Não sabia por que era importante fazer qualquer outra coisa a não ser rastejar para baixo das cobertas e desmaiar, e foi o que fiz.
Não fui trabalhar no dia seguinte.
***TRECHO PERDIDO***
“Se quiseres saber mais:
Dedetizadora Nocaute, 17th St.
Pergunte pelo Mike.”
***TRECHO PERDIDO***
porão era como um campo de extermínio.  Cilindros enferrujados de veneno pendiam nas paredes.  Havia frascos cheios de um líquido cor de âmbar, dentro dos quais flutuavam formas inertes.  Máscaras de gás e grossas luvas de borracha.  Tão logo chegamos ao final da escada, eu quis fechar os olhos e sair correndo.
- Nunca vou esquecer o dia em que encontramos ele – disse Mike.  – Era um porão secundário cheio de lixo, e lá estava ele, bem debaixo de uma pilha de jornais ensebados.  – Chegamos a uma porta de aço com manchas estranhas junto à maçaneta.  Mike enfiou a chave na fechadura e usou as duas mãos para fazê-la girar.  – Não fique puta se ele não estiver ai – disse.  – Às vezes, ele some durante semanas.  Sei lá como ele sai, mas ele sempre volta.  – Ele abriu só uma fração da porta.  Uma luz fraca e amarelada desenhou uma linha em sua frente quando ele espiou lá dentro.  – Legal, ele tá ai.
Fedia.  O aposento fedia a urina, merda e pêlo de bicho.  Havia duas velhas cadeiras de madeira viradas de lado.  Um garoto magricela estava agachado num dos cantos, perto de um abajur rachado.  Ele vestia um macacão jeans.  Sem camisa, sem sapatos.
- Manda a ver – disse Mike. – Faça uma pergunta para ele.
O garoto inclinou a cabeça e olhou para mim.  Parecia ter uns quinze anos.  Seus olhos eram miúdos como contas, e os cabelos cresciam em tufos emaranhados.  Tinha um nariz pronunciado, e vi ele repuxar os lábios para abrir uma espécie de sorriso.  Faltava-lhe um dente a cada três.
- Tim Esperto – sussurrou o garoto.
Ele virou a cabeça de lado e vi o que lhe restava da orelha.  Tiras esfarradapas de pele pendiam-lhe da cabeça como as pétalas de uma flor agonizante.  Acima delas havia três cicatrizes da largura de um dos meus dedos.
Ajoelhei-me para examinar-lhe o rosto.
- O que aconteceu com a sua orelha? – perguntei baixinho.
- Tim Esperto se escondeu quando os cachorros apareceram. – Ele balançava a cabeça para cima e para baixo ao falar, como se estivesse cantando. – Tim Esperto, muito esperto, o mato não quer mais ele, não, não.  Tim Esperto sabe de um monte de coisas.
Olhei para o Mike, que observava o teto e parecia entediado.  Ele para mim e disse:
- É melhor perguntar alguma coisa para ele agora.  Daqui a pouco ele vai virar um idiota bobão.
Não pensei antes de falar.  As palavras simplesmente afloraram:
- Uma noite dessas, eu vi uma coisa.  Num… num buraco.  Mas não consigo lembrar o quê.  Não de tudo.  Não lembro o que aconteceu em seguida e não sei se…
- Os espíritos estão vigiando você – ele disse, e deu risada.  Um pouco de saliva atingiu-me a face. – Quando você encontrar a mulher com o pássaro, diga para ela que a resposta é sete.  Sete, é o que dizem! – Ele produziu uma espécie de som resfolegante com seu riso.  Parecia estar mastigando a própria língua.
Ouvi os passos de Mike, que se dirigia para a porta.
- É só isso que “cê” vai conseguir arrancar dele – ele me disse.  – Até logo, Tim.
Do outro lado da porta, o celular de Mike tocou e nós dois nos sobressaltamos.  Ele me deu as costas para falar ao telefone.  Eu me vi voltando até a porta de metal.  Mike ainda não havia trancado.  Eu a abri e olhei lá dentro.
Tim não estava lá.  O aposento estava vazio, exceto pelos móveis.  Não havia outra saída, nenhuma outra porta nem janela.  Fitei o vazio como se estivesse em transe.  Foi então que captei um movimento no canto do olho e ouvi um barulhinho de jornal amassado.  Virei a cabeça na direção da parede oposta a tempo de ver uma coisa passar por um pequeno buraco perto do chão.  Se me pedissem um palpite, eu diria que era um rato, só que não tenho certeza de ter realmente visto alguma coisa.
*** ESSA DEDETIZADORA NÃO EXISTE.  SERÁ QUE ELA TROCOU O NOME? POR QUÊ? ***
*** TRECHO PERDIDO ***
“A Caratonha
Hanover Street.
Traga isto.”
*** TRECHO PERDIDO ***
O envelope continha uma única carta de baralho, um ás de paus.  O desenho no verso era algo que eu nunca tinha visto antes.  Representava uma serpente que se fechava num círculo e mordia o próprio rabo: um símbolo que, depois de algumas pesquisas, descobri ser o “uraboro”.  Em volta da cobra havia dez outros símbolos: um raio, um cubo, uma ankh egípcia, dois círculos sobrepostas, uma ampulheta, uma espiral, uma lua crescente, um crânio, um olho aberto e uma teia de aranha.  Eu esperava sentada na cafeteria de Hanover havia 45 minutos, brincando inutilmente com a carta, que tinha as bordas puídas, uma mancha esmaecida na face e uma marca de dobra numa das pontas.  Foi então que a garçonete me perguntou se eu queria outro café com leite.
Não era a mesma mulher que me atendera antes.  Ela não poderia ter mais de dezessete anos, tinha um corte de cabelo meio punk, uma argola no lábio e uma dezena de finas correntes de prata ao redor do pescoço.  Parte de uma tatuagem era visível sobre a clavícula, um floreado de tinta negra que escapava da camiseta justa.  Eu a olhei nos olhos e me senti como se tivesse respirado hélio.
Ela se sentou do outro lado da mesa e apontou a carta.
- É sua? – perguntou.
- Alguém me disse para trazê-la.
Ela assentiu.
- Você parece cansada.  Tem certeza de que está desperta?
Pensei na pergunta durante alguns segundos.
- Acho que estou meio adormecida. – eu disse.
Os ruídos da cafeteria – o retinir dos talheres e o arrastar de cadeiras pelo chão – pareceram enfraquecer.  O cheiro de grãos de café e o de massa folhada desapareceram.  Vi quando ela se debruçou e tocou as costas de minha mão com um dedo.
- A equação do sonho. – disse ela – contou-me que alguém viria.
Um calor elétrico passou da mão dela para meu corpo.  Virei a cabeça e pareceu-me ver imagens residuais.  Para onde quer que eu olhasse, as pessas deixavam trilhas de movimento, reflexos de si mesmas que ficavam para trás como imagens sobrepostas numa fotografia.  Abri a boca para falar, mas tudo estava mudando.  Tudo e todos estavam se fundindo com os respectivos reflexos.  As cabeças tinham centenas de faces.  As faces tinham milhares de olhos.  Um milhão de dedos em minha mão.  Um velho com uma criança em seu âmago.  Um bebê com uma anciã toda encolhida dentro dele.
Foi demais.  Olhei para a garota, a garçonete, e seu corpo era como vidro.  Dentro dele, no lugar do coração, pulsava uma estrela de luz azul.  Vi seus lábios se moverem.
- A equação do tempo está incompleta – sua voz se fez ouvir em minha mente. – Estamos nos comprimindo como bonequinhos de papel.
Eu olhava para os olhos dela, que brilhavam como poças de chuva ou sol.  Senti meus pulmões incharem feito balões e meu estômago se contorcer.  “Pare,” eu queria dizer.  As correntes no pescoço da moça tinham a opacidade do chumbo, mas abaixo delas um desenho prateado tremeluzia e pulsava.  A tatuagem, pensei.  Eu enxergava através da camiseta e percebi que o desenho retratava uma ave, um falcão de bico adunco que parecia ter saído de uma tumba egípcia.
- A mulher com o pássaro – pensei. – Diga a ela.
Ouvi minha voz dizer a palavra “sente” alguns segundos antes de eu mesma abrir a boca e pronunciá-la.
- Sete? – ela repetiu. – Sete? – Uma risada retumbate. – Sete! É isso, existem sete!
Percebi que meus olhos estavam fechados.  Contei até três e os abri.  Eu estava de pé no beco atrás da cafeteria.  Chovia.  Eu segurava o guarda-chuva.  Não era o meu.  O cabo tinha a forma de um papagaio, exatamente como em Mary Poppins.
*** PENSEI EM INVESTIGAR A CAFETERIA, MAS NOSSOS MESTRES ME ACONSELHARAM A PARAR POR AQUI E AGUARDAR NOVAS INSTRUÇÕES. ***
*** TRECHO PERDIDO ***
“Nós encontraremos novamente, Rath Street, hoje à noite.  Respostas.”
*** TRECHO PERDIDO ***
“Fenway” não estava de terno.  Não, ele vestia calças jeans amarrotadas e uma camisa desbotada.  Parecia o tio desempregado de alguém.  Eu o observo durante um minuto, depois disse:
- Estou esperando.
Ele sorriu com afetação.
- Você conseguiu o emprego.  Só não é o emprego que esperava.
Abri o zíper da jaqueta e deixei o bilhete cair no chão.
- Por que, Sr. Mummer? Por que fingir que está morto? Por que mentir para mim sobre sua identidade? Por que colocar aquele anúncio no jornal? Com quantas pessoas você fez a mesma coisa?
Ele atravessou a sala e encostou-se no peitoril da janela.
- Dezenas de pessoas responderam ao anúncio – disse ele. – Metade deixou a casa depois de esperar quinze minutos.  Um outro tanto saio antes de meia hora.  Mas você, não.  Uma demonstração de paciência. – Ele apontou a porta negra. – E das 39 pessoas que responderam ao anúncio, você foi a única que se interessou pela porta. – Ele balançou a cabeça e soltou uma risadinha. – Meu Deus, uma porta negra num aposento vazio? E, mesmo assim, a maioria simplesmente ignorou.
*** ESSE “MUMMER” NÃO CONSTA DE NENHUM DE MEUS ARQUIVOS.  VERIFIQUEI OS REGISTROS E ESSE É MESMO O NOME DELE.  MAS ELE DEU UM JEITO DE PASSAR DESPERCEBIDO ATÉ AGORA, APESAR DE EU TER FEITO UM PUTA ESFORÇO PARA CONHECER TODOS OS FIGURÕES DA ÁREA.  QUEM ESTAVA PROTEGENDO ESSE CARA? ***
Ele foi até a porta e segurou a maçaneta.
- Sabe, a maioria das pessoas é perfeitamente capaz de fechar os olhos até mesmo para as coisas mais óbvias.  Elas vêem somente o que querem ver e bloqueiam todo o resto.  Sei que você investigou minha suposta morte e não encontrou nenhum registro.  Por isso, eu sabia que você ficaria intrigada e seguiria as pistas contidas em meus bilhetes.  Você gostaria de ver o que há atrás da porta agora?
Cerrei os punhos para evitar que minhas mãos tremessem.
Ele não esperou uma resposta.  A maçaneta girou sem fazer ruído e a porta se abriu suavemente.  Ele cruzou o limiar e eu o ouvi dizer:
- Desculpe-me pela frialdade nesta parte da casa.  Ajuda na conservação.
Eu o acompanhei e entramos num aposento estreito.  Estava escuro, e então meus olhos foram ofuscados quando ele acendeu a luz.
- O trabalho da minha vida – disse ele. – Vá em frente, dê uma olhada.
Cruzei os braços por causa do frio e girei lentamente para observar o aposento inteiro.  Eu queria desesperadamente fechar os olhos.
Havia estantes dos dois lados.  As prateleiras vergavam com o peso.  Pilhas de papel.  Cadernos de espiral, fichários de três furos, pastas de arquivo.  Outros tantos empilhados sobre uma pequena mesa.  Ele foi até o outro lado do aposento e virou-se para mim.  Não consigo descrever aquele olhar.  Um misto de orgulho, nervosismo e alívio.
Peguei um caderno.  Estava todo preenchido com uma caligrafia caprichada, em letra de forma e tinta preta.  Os parágrafos meticulosos se arranjavam em seções, cada uma delas indentificada por um título em uma data.  “O MANEGUIM NO ARMÁRIO,” “MURMÚRIOS NO BECO,” “O PREFERIDO DO VOVÔ,” “A PERNA.”  Comecei a ler, mas, quando cheguei ao trecho sobre o tanque de enguias, tive de parar.
- O que… o que é isto? – perguntei.  Eu achava que sabia a resposta, mas meus ouvidos zuniam e eu precisava ganhar tempo.
- Histórias verdadeiras – ele respondeu baixinho. – Histórias verdadeiras sobre o mundo.  Passei toda a vida colecionando essas coisas.  Algumas foram adquiridas, mas, na maioria dos casos, eu mesmo entrevistei as testemunhas ou vi tudo acontecer.
- Não podem ser verdadeiras – falei e, ao mesmo tempo em que as palavras deixavam minha boca, senti o cheiro de urina da cela de Tim Esperto.
- O mundo não é o que pensamos – disse ele. – Não é do jeito que eles dizem que é.  O que tudo isso significa? Não sei.  Sou apenas um colecionados de histórias.  Um arquivista.  Um repórter.  Mas não posso prosseguir por muito mais tempo.  Alguém precisa tomar meu lugar e seguir em frente.  E esse alguém é você. – Ele fava depressa agora, e a saliva voava de sua boca. – Posso lhe dizer onde procurar, com quem falar.  Existem tantos segredos…
Involuntariamente, olhei de relance para a mesa onde eu havia deixado o caderno aberto.
Há um galpão na Front Street onde são realizados certos procedimentos cirúrgicos…
- Não! – eu berrei, cortando-lhe o entusiasmo. – Nem ferrando, não! Não vou tomar parte nisto!
- Mas…
- Você está louco! Acha que eu quero acabar como você? Vivendo sozinha numa casa arruinada e tendo apenas fantasias e ficções por companhia?
- Isto não é ficção – ele disse friamente. – Você viu certas coisas.
- Filho da puta! – Meus gritos pareceram fazê-lo encolher. – Sabe que eu perdi o emprego ontem por ter dito a meu patrão que não queria ver o psiquiatra da empresa? Não consigo dormir durante mais de três horas sem acordar aos gritos!
Ele estava cara a cara comigo antes que eu conseguisse me virar.
- É tarde demais – ele berrou.  Segurou-me pelos ombros. – É tarde demais! Você já está envolvida.  Você sabe algumas coisas.  Você viu certas coisas. – Ele relaxou as mãos e me soltou. – Não dá para voltar atrás depois de abrir os olhos.  Por favor… – Seus olhos pareciam ternos e úmidos. – Por favor.  Estou fazendo isto há tanto tempo.  Não posso mais.  Preciso de alguém para tirar esse fardo de meus ombros…
Eu o xinguei e o empurrei para longe.  Ao bater no chão, ele soltou um gemido patético, depois inspirou profundamente.
- Você não entende – ele disse com um chiado.
Saquei minha arma.
- Meu pai comprou isto para mim quando entrei na faculdade.  Ele me ensinou a atirar.  Se eu vir você novamente ou receber outro recado seu, juro por Deus que vou te matar. – Eu chorava. – Não vou fazer esse seu joguinho estúpido.
Ele ficou de bruços um momento, depois começou a se levantar.  Virou a cabeça e olhou para mim.  E, de repente, a posição de seu corpo e o ângulo da cabeça me remeteram a um outro lugar.  Eu estava naquele beco mais uma vez, olhando para o fundo do bueiro, sentindo o bile subir pela garganta e obrigando-me a contar pedaços de corpos.  Uma mão, duas; um pé, pequeno como o de uma criança…
Foi então que outra forma apareceu.  Saiu das sombras e pairou sobre os corpos desmembrados.  Vestia farrapos.  Trapos imundos que não me deixavam ver muito bem o que estava acontecendo.  Um braço gordo e ensebado se estendeu e agarrou um pedaço disforme de carne.  Vieram os ruídos.  Pancadas, estalos de língua, sucção.  O vulto se mexeu.  Mastigação.  Pressionei as duas mãos contra a boca e apertei, mas um arfar desesperado ainda assim escapou de meus lábios.
E a coisa olhou para mim.
Ela girou os ombros, inclinou a cabeça e olhou para mim.  Apesar de eu estar na rua e aquilo no subsolo, senti-me uma formiga diante de um gigante.  O sangue lhe escorria pelo queixo e havia um bigode feito de gordura de uma serpente.  Havia estranhas protuberâncias em sua cabeça.  Os olhos eram humanos, tão humanos, e estavam fixos em mim, me queimavam, tentavam me obliterar do mesmo jeito que o sol suprime a noite.
Foi então que ouvi o tiro e olhei para o cadáver de Mummer e para o sangue que manchava o carpete.
Depois disso, perambulei pela casa meio atordoada.  Havia outros cômodos.  Muitos mais.  Um sotão.  Um porão.  Todos cheios de histórias.  Torres de cadernos, montanhas de pastas, oceanos de arquivos.  Histórias escritas em guardanapos, versos em envelopes, tampas de caixa e retalhos de tecido.  Histórias escritas nas próprias paredes, no piso e nas janelas.
Eu sabia o que aconteceria se as deixasse intactas.  Sabia que cedo ou tarde eu me obrigaria a lê-las.  Todas elas.
Não podia deixar isso acontecer.
***TRECHO PERDIDO***
Quando cruzei a fronteira do estado, eu já era a principal suspeita dos dois crimes: incêndio e assassinato.  Não sei que “provas” seriam essas que encontraram em meu apartamento.  Alguém provavelmente plantou alguma coisa.  De qualquer maneira, sei como a polícia trabalha.  Tenho quase certeza de que conseguirei me manter sempre um passo à frente dela.
*** MINHA FONTE NA POLÍCIA DISSE QUE ELA AINDA ESTÁ FORAGIDA.  QUEM A ESTÁ AJUDANDO? O INIMIGO? ***
Para onde quer que eu olhe, questiono o que vejo.  Quem é o cara no beco que me segue com os olhos? Quem são os dois carecas nos fundos do restaurante, com medalhões estranhos pendurados no pescoço? E o cão enorme que caminha pela beira da estrada e desaparece em pleno ar antes que os faróis do carro o iluminem?
Eu me pergunto o que acontecerá em seguida.
Espero que esta carta chegue até você.  Parece que não conversamos há anos.  Eu nem sei ao certo onde você está lecionando hoje em dia.
Espero ter coragem de colocar esta carta no correio.
Não me procure, papai.  Por favor.
Destrua esta carta assim que terminar.
*** FIM DA TRANSCRIÇÃO ***
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Nenhum comentário:

P�gina Anterior Pr�xima P�gina Home